Segundo Miguel Chaia, professor universitário e diretor da Fundação Bienal, a sociedade atual vive um período de estetização do cotidiano onde a arte aplica-se à práxis humana, servindo como expressão visual do conjunto de relações entre os homens e gerando um sentimento de união e relação através dos sentimentos. Porém, ao falar de contemporaneidade, chegamos a um ponto onde a arte torna-se ampla a ponto de confundir-se com outras coisas e gerar certas confusões conceituais, como ocorreu na matéria de Ferreira Gullar sobre reprodutibilidade técnica no dia 23 de Maio, na Folha de São Paulo.
Gullar tratou sobre a relação entre o preço de objetos artísticos e itens industriais – no caso um carro esporte da marca Bugatti – analisando a predominância do alto preço no segundo item em relação ao primeiro e citando um equívoco de Walter Benjamim ao tratar da aura da obra de arte em seu texto “A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica”, em uma análise onde muitos fatores foram desconsiderados e só um viés da obra de Benjamim foi analisada, nem sempre de forma correta.
Inicialmente, devemos pensar no período em que vivemos, onde o carro faz condão de um objeto de desejo e que, portanto, pode entrar como fator gerador de experiência estética, comum das artes visuais após liberação da religião mas não exclusivo dela. Portanto, o exemplo gerador da discussão na matéria não foi feliz, pois duas situações diferentes de atribuição de valor foram relacionadas. Se a relação passa a ser livre, entrarão também na comparação imóveis, moda, jóias e toda uma discussão sobre status social que geraria outra matéria sobre a relação com a estética atual.
Além disso, foi citada no texto a criação de aura em uma obra de arte devido as suas reproduções futuras, citando como exemplo a Monalisa e suas inúmeras reproduções. Discordo, inicialmente porque é citado no texto o perigo contido na tese por pressupor que “todas as pessoas têm as mesmas qualidades, o mesmo gênio de um Albert Einstein(...)”. Oras, esse pensamento vai totalmente contra outra obra muito importante e representativa que é a Obra Aberta, de Umberto Eco, além de pesquisas sobre construtivismo na arte e experiência x informação (teoria de Larrosa). Como negar a visão, interpretação e experiência estética de cada um e, dessa forma, associar a criação da aura à reprodução e não a outros fatores muito mais representativos como a institucionalização da arte e a atribuição de valor pelos detentores do poder artístico. Sem dúvida não foi alguma reprodução posterior de Monalisa, como a realizada por Duchamp, que fez todos os milhares de visitantes diários do Louvre irem visitar a obra original.
Vejamos um exemplo claro: Salvador Dali, ao realizar sua reprodução da Vênus de Milo com gavetas e maçanetas peludas em 1936 que integra seu “mobiliário paranóico”, subverte o conceito da beleza decorrente da obra inicial e o alia à funcionalidade e conceitos surrealistas, indo contra a proposta original da Vênus e embutindo a estátua da proposta surrealista (vejam neste um simples exemplo de uma obra que já foi massificamente reproduzida). Porém, essa reprodução só é feita devido à aura já estabelecida na imagem por diferentes fatores históricos, e não gerou nenhuma onda repentina de interesse na obra original, apenas forneceu uma nova leitura de algo já produzido e portanto, produziu algo novo. Esse conceito pode ser revisto por Bourriaud em seu livro “Pós-produção”, onde o autor afirma que na contemporaneidade nada mais é produzido, apenas apropriado para a produção de algo novo através de uma nova leitura, criando uma obra independente que não altera a aura da anterior. Até porque Benjamim não critica a reprodutibilidade da obra de arte (pelo contrário, diz que a obra de arte sempre foi reprodutível), apenas cita que há o surgimento da reprodutibilidade técnica e que essa mudança altera alguns conceitos das artes visuais.
Sem dúvida, não houve equívoco algum, pois a aura realmente não pertence aos objetos industriais e sim aos objetos artísticos, porém isso não impede o interesse pessoal por eles e a vontade de colecionar e investir em sua posse. Porém a aura está muito além do preço dado, e constitui-se de todo um conjunto de relações formado apenas pelo contato e reflexão sobre a obra artística, que – no caso da pintura e escultura, além de linguagens atuais como a performance - é única e irreproduzível.. As reproduções de uma obra original não vêm com o objetivo de aumentar a aura da “obra-base” e podem, no máximo, complementar a leitura delas. A Vênus de Dali não é a Vênus original, assim como ocorre com as Monalisas feitas ao longo da história. Além de tudo, a discussão proposta por Gullar nem é valida, pois ele trata de um tipo de reprodução poética para exemplificar conceitos sobre reprodutibilidade técnica para justificar a venda de um carro que, analisando bem, nem em série é produzido. Acho bom pararmos de pensar em reprodução para produzir coisas de melhor qualidade para o público.
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