quarta-feira, outubro 28

Telefone sem fio

Esta semana decidi contar a vocês, um fato que aconteceu com a minha mãe sexta-feira passada. Creio que depois dela ter me contado cinco vezes, eu tenha material suficiente para reproduzi-lo, como narradora onisciente. Ah, e para aqueles que não sabem, o nome dela é Marli.

Mais uma passagem, mais um voucher, mais uma mala e mais olhares de aeromoças numa mesma semana. Que ela estava viajando demais ninguém podia negar, mas era tudo necessário, e de certa forma até agradável. Estava conhecendo o país inteiro por “conta da casa”! Mas que cansava, cansava.

Voltando de Santa Catarina pra casa, entrou no boeing atrasada e suando. Que inferno, não dera tempo nem de ligar para avisar que estava a caminho. Que seja, vamos assim mesmo agora...

- Oi? – Ela não tinha visto o comissário. – Ah, só tenho essa mala de mão, tudo bem, obrigada.

Marli foi instalada na cadeira do corredor, em cima da asa, junto com um casal. Decidiu nem cumprimentar, estava muito cansada, ao passo que eles logo começaram o falatório manjado.

- Ah amor, eu odeio sentar na asa. – Era a moça.

- Para de ser medrosa! Ah eu adoro, sabe como é, quando eu estava voltando dos EUA àquela vez, vim sentado na asa e o cara do meu lado, no início do vôo, começou a gritar...

- Querem beber alguma coisa? – Era o comissário, Marli e os dois pegaram água.

- Então, ai ele gritou e mandou chamarem o comandante, porque querida, olha só, tinha-um-defeito-na-asa! E ai deu tempo da gente voltar e consertar! Que tal? Por isso que eu escolhi aqui pra gente, vou ficar de olho, não se preocupa não, vou ficar esperto. – E com isso deu uma piscadela para Marli, que se assustou e virou para beber sua água.

Tudo bem, tudo caminhando rotineiramente, até que ela sente um gosto diferente na água. O que é isso... Sangue? Ai meu deus, me cortei com esse copo. Calma, papel, papel, ah aqui. Pronto, agora é só eu estancar e vai ficar tudo bem.

Parecia que ela tinha o controle da situação, mas não queria que ninguém visse o sangue, pois poderiam fazer um escândalo maior do que o necessário, e afinal nem estava doendo. Mas espera ai, o papel está... Encharcado de sangue?! Meu deus, o corte deve ter sido mais fundo do que eu imaginei, pensava ela, outro papel... Aqui - pegou o do homem. Pronto.

Contudo nem um minuto depois ela continuava com; sangue jorrando, sede e com três guardanapos encharcados de sangue na mão. Acho melhor eu ir ao banheiro, decidiu. Mas não pode nem levantar, pois um homem do outro lado do corredor a viu, e antes que ela fizesse um gesto de ‘tudo bem’, ele ergueu a sobrancelha e abriu o berreiro.

- Ela está sangrando-oh! Mulher ferida! Meu deus, ela cortou um lábio com uma faca!

Faca? Quem falou em faca?

- Moça calma, não chora. – Era o louco que estava esperto com a asa do avião.

- Eu extou bem chente. – Difícil falar com o guardanapo.

- Comissário! Rápido! Tem uma mulher ferida com uma faca! – Homem ruivo duas fileiras à frente.

- O que aconteceu? Alguém cortou uma mulher com uma faca? – Loira com nariz entupido.

- Ela precisa de uma maca? – Uma senhora perto da tv no meio do avião.

- Ah não, chente sério, é só um cortechinho...

- Chamem o piloto! Ela quer um cachimbinho! Está delirando.

- Tem uma mulher sangrando, e ela está armada com uma faca! – Um menino, dez fileiras à frente.

- Moça, não desmaia. – O louco da asa, qual é o problema desse homem?

- Uma mulher levou uma facada! Só pode ter sido um árabe! – Gordo na classe A.

- Tem um terrorista árabe com uma faca aqui dentro? – Mulher do gordo classe A.

Só podia ser brincadeira, ela levantou-se mais revoltada com o escândalo do que com insanidade do boieng. Eles tinham que parar; parar de falar, de forçá-la a se sentar, forçá-la a estancar, a deixar escorrer, a explicar, a ficar quieta...

- Gente! – Tirou o papel da boca e todos se assustaram com o sangue, voltou o papel. – O copo que me cortou! Eu extou bém.

- Processe a companhia!

Silêncio. O assunto sério havia chego; processo, dinheiro, máfia, mídia... Os comissários se entreolharam e acalmaram as pessoas com as mãos tremendo.

Minutos intermináveis se seguiram com os comissários implorando a ela, diziam que iam falar com a empresa dos copos e que ela deixasse tudo bem. O que eles não entendiam é que estava tudo bem, ela só queria chegar em casa e jantar.

Nunca foi tão fácil pegar a mala na esteira do check-in ou conseguir sair do avião. Todos abriam espaço, pois queriam ver a mulher terrorista provavelmente sem rosto e árabe.

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